terça-feira, abril 09, 2013

Aos alunos 9º ano - Informações sobre a Rosa do Povo



Para baixar outra análise d'A Rosa do Povo, clique abaixo:
http://www.4shared.com/office/I9WzhuTn/Resumo_e_anlise_-_A_Rosa_do_Po.html


ATENÇÃO:    Leia todo o material a seguir.

Publicado em 1945, Rosa do Povo é aclamado por inúmeros setores da crítica literária como a melhor obra de Carlos Drummond de Andrade, o maior poeta da Literatura Brasileira e um dos três mais importantes de toda a Língua Portuguesa. Antes que se comece a visão sobre esse livro, necessária se faz, no entanto, uma recapitulação das características marcantes do estilo do grande escritor mineiro.
Desde o seu batismo de fogo em 1928, com a publicação do célebre "No Meio do Caminho", na Revista de Antropofagia, Drummond ficou conhecido como "o poeta da pedra". Ao invés de se sentir ofendido com tal apelido, de origem pejorativa, acaba assumindo-o, transformando-o em um dos símbolos de seu fazer literário.
De fato, obedecendo a um quê de Mallarmé em sua ascendência (principalmente no que se refere à idéia de poesia como algo ligado à mineral), a dureza e até a frieza da pedra marcam a poesia drummondiana, pois ela é dotada não de uma insensibilidade, mas de uma afetividade contida. 

Torna-se, portanto, um dos pilares da poesia moderna (junto de Bandeira e João Cabral), afastando do lugar nobre de nossa literatura o melodrama, a emoção desbragada, descontrolada e descabelada que por muito tempo imperaram por aqui.

Dessa forma, vai sempre se mostrar um eu-lírico discreto ao sentir o seu círculo e o seu mundo até mesmo quando vaza críticas, muitas vezes feitas sob a perspectiva da ironia. Aliás, essa figura de linguagem é muito comum na estética do autor, pois pode ser entendida como uma forma torta de dizer as coisas. Não se deve esquecer que essa qualidade nos remete ao célebre adjetivo gauche (termo francês que significa torto, sem jeito, desajeitado), poderoso determinante da produção do autor.
Tal caráter está não só na linguagem (que muitas vezes não tem os elementos considerados óbvios para a poesia), mas também pode ser encontrado na maneira deslocada como se relaciona com o seu mundo, o que pode ser justificado pela sua origem, pois é um homem de herança rural, filho de fazendeiros, que acaba se encontrando no ambiente urbano (essa mudança de plano é uma característica encontrada em vários escritores modernistas, o que possibilita afirmar que Drummond, se não é o símbolo de sua geração, é o representante do próprio Brasil, que estava se tornando urbano, mas que carregava ainda uma forte herança rural.).
No entanto, ao invés de esse seu sem jeito tornar-se elemento pejorativo, acaba por dar-lhe uma potência fenomenal na análise social e existencial. Posto à margem do sistema, consegue ter uma visão mais clara e menos comprometida pela alienação dos que se preocupam em cumprir seus compromissos rotineiros. Eis o grande feito de Rosa do Povo.

Para a compreensão dessa obra, bastante útil é lembrar a data de sua publicação: 1945. Trata-se de uma época marcada por crises fenomenais, como a Segunda Guerra Mundial e, mais especificamente ao Brasil, a Ditadura Vargas. Drummond mostra-se uma antena poderosíssima que capta o sentimento, as dores, a agonia de seu tempo. 

Basta ler o emblemático "A Flor e a Náusea", uma das jóias mais preciosas da presente obra.


A FLOR E A NÁUSEA

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Uma flor nasceu na rua!
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
E soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios, 
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.



Análise

Nota-se no poema um eu-lírico mergulhado num mundo sufocante, em que tudo é igualado a mercadoria, tudo é tratado como matéria de consumo. Em meio a essa angústia, a existência corre o risco de se mostrar inútil, insignificante, o que justificaria a náusea, o mal-estar. Tudo se torna baixo, vil, marcado por "fezes, maus poemas, alucinações".

No entanto, em meio a essa clausura sócio-existencial (que pode ser representada pela imagem, na terceira estrofe, do muro), o poeta vislumbra uma saída. Não se trata de idealismo ou mesmo de alienação - o poeta já deu sinais claros no texto de que não é capaz disso. Ou seja, não está imaginando, fantasiando uma mudança - ela de fato está para ocorrer, tanto que já é vislumbrada na última estrofe, com o anúncio de nuvens avolumando-se e das galinhas em pânico. É o nascimento da rosa, símbolo do desabrochar de um mundo novo, o que mantém o poeta vivo em meio a tanto desencanto.
Dois pontos ainda merecem ser observados no presente poema. O primeiro é o fato de que ele, além de ser o resumo das grandes temáticas da obra, acaba por explicar o seu título. Basta notar que, conforme dito no parágrafo anterior, a rosa indica o desabrochar de uma nova realidade, tão esperada pelo poeta.
E a expressão "do povo" pode estar ligada a uma tendência esquerdista, socialista, muito presente em vários momentos do livro e anunciadas pela crítica ao universo capitalista na primeira ("Melancolias, mercadorias espreitam-me.") e terceira estrofes ("Sob a pele das palavras há cifras e códigos."). O novo mundo, portanto, teria características socialistas.
O outro item é visto pelo estreito relacionamento que "A Flor e a Náusea" estabelece com o poema a seguir, "Áporo", um dos mais estudados, densos, complexos e enigmáticos da Literatura Brasileira.


ÁPORO

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.




Note que a narrativa parece ser tirada de "A Flor e a Náusea": um inseto, o áporo, cava a terra sem achar saída. Assemelha-se ao eu-lírico do outro poema, que se via diante de um muro e da inutilidade do discurso. No entanto, Drummond continua discursando, vivendo, assim como o inseto continua cavando. Então, do impossível surge a transformação: do asfalto surge a flor, da terra-labirinto-beco surge a orquídea.
Há algo aqui que faz lembrar o poema "Elefante", também no mesmo volume. Da mesma forma como Drummond fabrica seu brinquedo, mandando-o para o mundo, de onde retorna destruído (mas no dia seguinte o esforço se repete), o eu-lírico de "A Flor e a Náusea" sobrevive em seu cotidiano nulo e nauseante e o áporo perfura a terra. É a temática do "no entanto, continuamos e devemos continuar vivendo", tão comum em vários momentos de A Rosa do Povo.
"Áporo", portanto, é um poema tão rico que pode ter outras leituras, além dessa de teor existencial. Há também, por exemplo, a interpretação política, que enxerga uma referência a Luís Carlos Prestes ("presto se desata"), que acabara de ser libertado pelo regime ditatorial. A figura histórica pode ser vista, portanto, como um áporo buscando caminho na pátria sem saída que se tornou o Brasil na Era Vargas.

Ainda assim, existe quem veja no texto um mero - e inigualável - exercício lúdico, em que as palavras são contempladas, manipuladas, transformadas. Basta lembrar, por exemplo, que "áporo", além de ser a designação do inseto cavador, é também um termo usado em filosofia e matemática para uma situação, um problema sem solução, sem saída. Além disso, a essência etimológica da palavra inseto é justamente as letras "s" e "e", diluídas no corpo do texto. 

Observe como tal pode ser esquematizado:

Um inSEto cava
cava SEm alarme
perfurando a terra
SEm achar EScape.
Que faZEr, ExauSto,
Em paíS bloqueado,
enlaCE de noite
raiZ E minério?
EiS que o labirinto
(oh razão, miStÉrio)
prESto SE dESata:
em verdE, Sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-SE.



Note que a essência do áporo, do inseto, vai se movimentando em todo o poema, transformando-se, até o ápice do último verso da terceira estrofe. É o momento da transformação e da iniciação, já anunciadas na segunda estrofe na aliteração do /s/ e do /t/ e da assonância do /e/ que acabam criando a forma verbal "encete" (ENlaCE de noiTE), que significa principiar, mas que possui também uma forte aproximação sonora com "inseto". A mutação final virá no último verso: o áporo inseto se transforma em áporo orquídea ("áporo" é também o nome de um determinado tipo de orquídea), a flor que se desabrocha para a libertação.

Tanto que a raiz SE está prestes a se libertar, pois virou a forma pronominal "se" (e, portanto, com relativa vida própria) que encerra o poema. Tal trabalho com a linguagem é a base de todo texto poético, como é defendido pelo próprio Drummond em "Procura da Poesia", transcrito abaixo:


PROCURA DA POESIA

Não faça versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é a música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de
espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a 
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
Como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara: 
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.



Esse antológico poema é dividido em duas partes. Na primeira apresentam-se proibições sobre o que não deve ser a preocupação de quem estiver pretendendo fazer poesia. Sua matéria-prima, de acordo com o raciocínio exibido, não são as emoções, a memória, o meio social, o corpo. 

Na segunda parte explica-se qual é a essência da poesia: o trabalho com a linguagem. O poema pode até apresentar temática social, existencial, laudatória, emotiva, mas tem de, acima de tudo, dar atenção à elaboração do texto, ou seja, saber lidar com a função poética da linguagem.

A riqueza de A Rosa do Povo não se restringe, porém, às temáticas abordadas. Há uma profusão de outros assuntos, como a abordagem da cidade natal ("Nova Canção do Exílio", em que há uma reinterpretação do "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias), a observação do problemático cotidiano social ("Morte do Leiteiro", em que o protagonista, que dá nome ao poema, acaba sendo assassinado em pleno exercício de sua função por ser confundido com um ladrão, o que possibilita uma crítica às relações sociais esgarçadas pelo medo), a rememoração dos parentes
("Retrato de Família", em que o eu-lírico percebe a viagem através da carne e do tempo de uma constante eterna ligada à idéia de família) e o amor como experiência difícil, o famoso amar amaro ("Caso de Vestido", em que o eu-lírico, uma mulher, narra o sofrimento por que passou quando da perda do seu marido e quando também da recuperação dele).
Em suma, Rosa do Povo é obra monumental que merece não apenas ser lida para um vestibular, mas fruída para se tornar uma das grandes experiências de nossa existência.




MAIS ANÁLISES


Valendo-nos de óbvia simplificação didática, podemos dividir os poemas de A rosa do povo em sete áreas temática. É claro que, dada à complexidade dos versos drummondianos, muitos desses poemas podem ser enquadrados em mais de um núcleo de assunto. No entanto, a divisão abaixo corresponde a um esquema estabelecido pelo próprio escritor em sua Antologia poética:
- a poesia social;
- a reflexão existencial (o Eu e o Mundo);
- a poesia sobre a própria poesia;
- o passado;
- o amor;
- o cotidiano;
- a celebração dos amigos;
3ª etapa: paráfrase e hipótese interpretativa 

- Leia o poema
O Elefante . Se tiver acesso à Internet, é possível escutar o ator Paulo Autran recitando esse poema em http://www.youtube.com/watch?v=7gSbRxnQHMc

O ELEFANTE

Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos móveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
é a parte mais feliz
de sua arquitetura.
Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.

Eis o meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê nos bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa
as formas naturais.

Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.
É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.

Mas faminto de seres
e situações patéticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos,
esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.

E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,
caiu-lhe o vasto engenho
como simples papel.
A cola se dissolve
e todo o seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão,
jorra sobre o tapete,
qual mito desmontado.
Amanhã recomeço.

O Elefante, de Carlos Drummond de Andrade, é um poema que não aceita uma leitura literal. Todos os seus versos devem ser lidos no sentido figurado, como um conjunto de metáforas que compõe uma alegoria (para saber mais sobre alegoria, consulte a aula sobre o romance A Sombra dos reis barbudos", de José J. Veiga).
O elefante parece figurar algo como um sentido do que é humano, ou o próprio fazer poético.


4ª etapa: análise


1. Fabrico um elefante
2. de meus poucos recursos.
3. Um tanto de madeira
4. tirado a velhos móveis
5. talvez lhe dê apoio.
6. E o encho de algodão,
7. de paina, de doçura.
8. A cola vai fixar
9. suas orelhas pensas.
10. A tromba se enovela,
11. é a parte mais feliz
12. de sua arquitetura.
13. Mas há também as presas,
14. dessa matéria pura
15. que não sei figurar.
16. Tão alva essa riqueza
17. a espojar-se nos circos
18. sem perda ou corrupção.
19. E há por fim os olhos,
20. onde se deposita
21. a parte do elefante
22. mais fluida e permanente,
23. alheia a toda fraude.


Na primeira estrofe do poema, o Eu lírico fabrica e apresenta o seu elefante. Note que a palavra fabrico coloca o elefante no campo dos artefatos, que são objetos necessariamente culturais e evidenciam a atividade propriamente humana.
O elefante, que o Eu lírico fabrica é construído com poucos recursos. Ele é pobre, simples, e confeccionado com uma mistura de madeira velha, algodão, paina e doçura. Repare que, nos versos 6 e 7, o poema usa, sem hierarquia, substantivos concretos e abstratos para descrever do que é feito o elefante. Tal uso induz o leitor a ler esses versos no sentido figurado, sentido que contamina os versos anteriores e começa a delinear o elefante como alegoria. Sendo assim,
algodão e paina, associados à doçura, sugerem maciez e calor. Mais ainda, maciez, calor e doçura aludem, em conjunto, à ideia de aconchego, delicadeza e leveza.
Além disso, ele porta a ideia de pureza, enfatizada nos versos 13 a 18. Suas prezas constituem uma riqueza alva, feita de matéria pura que não se corrompe nem mesmo quando se espoja nos circos. O elefante é um ser contraditório, o que está figurado por uma antítese (v.22): ele tem nos olhos sua parte mais fluida e permanente.
Considerando o conjunto de metáforas que figuram o elefante na 1ª estrofe, podemos dizer que ele é um produto da atividade humana, um tanto precário mas de uma essência imaterial que não se corrompe.
Após essas colocações, pergunte aos alunos em que tempo estão os verbos dessa primeira estrofe. Peça que formulem hipóteses sobre a função do presente do indicativo nesse texto (O presente do indicativo denota uma ação pontual, rotineira ou habitual. Por enquanto não é possível saber de que tipo de ação se trata, mas tal elemento será importante ao final da análise).

5ª etapa: análise



1. Eis o meu pobre elefante
2. pronto para sair
3. à procura de amigos
4. num mundo enfastiado
5. que já não crê nos bichos
6. e duvida das coisas.
7. Ei-lo, massa imponente
8. e frágil, que se abana
9. e move lentamente
10. a pele costurada
11. onde há flores de pano
12. e nuvens, alusões
13. a um mundo mais poético
14. onde o amor reagrupa
15. as formas naturais.


Na segunda estrofe o elefante está pronto para sair à procura de amigos. Porém, o que encontra é um mundo enfastiado que já não crê nos bichos e duvida das coisas. Note que bichos e coisas aparecem hierarquizados nos versos 5 e 6. Lembremos que elefante está sendo lido como alegoria, isso é, um conjunto de metáforas que ganha um sentido maior. Vimos na 1ª estrofe que o elefante do poema que traz consigo as ideias de delicadeza, leveza e pureza. Considerando que ele é também um bicho, podemos pensar que não crer nos bichos poderia significar não acreditar nos produtos mais puros e delicados da indústria humana.
Esse mundo que já não crê nos bichos, às coisas ainda concede o benefício da dúvida. Assim, mantendo sempre a leitura alegórica, podemos pensar no mundo moderno: um mundo desiludido onde já não há espaço para o mais puro e frágil do humano, mas há espaço para algum sentido nas coisas, nos objetos. É um mundo reificado onde o mundo mais poético não encontra interlocutores.(Para saber mais sobre reificação ou coisificação, veja a sequência sobre Crônicas de Luís Fernando Veríssimo). 
Lendo alegoricamente os versos 7 a 15, podemos pensar no elefante como o fazer poético, ou artístico, procurando pelo mundo reificado quem o receba e escute.
6ª etapa: análise



1. Vai o meu elefante
2. pela rua povoada,
3. mas não o querem ver
4. nem mesmo para rir
5. da cauda que ameaça
6. deixá-lo ir sozinho.
7. É todo graça, embora
8. as pernas não ajudem
9. e seu ventre balofo
10. se arrisque a desabar
11. ao mais leve empurrão.
12. Mostra com elegância
13. sua mínima vida,
14. e não há cidade
15. alma que se disponha
16. a recolher em si
17. desse corpo sensível
18. a fugitiva imagem,
19. o passo desastrado
20. mas faminto e tocante.


Na terceira estrofe, o delicado fazer poético confronta um mundo onde já não há lugar para a poesia. O elefante percorre a rua povoada sem ser visto. Ele é vivo e gracioso, embora de estrutura precária e ruinosa. Mas ninguém se deixa tocar pela arte nesse mundo reificado.
Leia terceiro poema do livro, A flor e a náusea, e observe como o tema da poesia sem lugar (agora na figura da flor que brota no asfalto) é recorrente na poética drummondiana.

7ª etapa: análise

1. Mas faminto de seres
2. e situações patéticas,
3. de encontros ao luar
4. no mais profundo oceano,
5. sob a raiz das árvores
6. ou no seio das conchas,
7. de luzes que não cegam
8. e brilham através
9. dos troncos mais espessos,
10. esse passo que vai
11. sem esmagar as plantas
12. no campo de batalha,
13. à procura de sítios,
14. segredos, episódios
15. não contados em livro,
16. de que apenas o vento,
17. as folhas, a formiga
18. reconhecem o talhe,
19. mas que os homens ignoram,
20. pois só ousam mostrar-se
21. sob a paz das cortinas
22. à pálpebra cerrada.



Na quarta estrofe, o Eu lírico nos conta o que seu elefante precisa para existir: seres e situações patéticas, encontros ao luar no mais profundo oceano, sítios, segredos, episódios não contados em livro, de que apenas o vento, as folhas, a formiga reconhecem o talhe, mas que os homens ignoram.
Seguindo a linha do raciocínio alegórico, podemos ler os versos 1 e 2 como a busca do pathos. O pathos, para os antigos, é o estado em que o humano perde o controle sobre si mesmo, em que a razão perde forças dando lugar a experiências que evocam turbulência, simpatia ou compaixão. Em arte, o patético apela às emoções do leitor, convocando-o a sentir  junto com o artista o que ele tenta figurar em sua obra.
O elefante ou, alegoricamente, o fazer poético, busca pelo pathos entre homens que, reificados, já não podem olhar para acontecimentos miúdos e delicados (versos 16 a 18), pois já não se reconhecem no humano. Reconhecem-se apenas vestidos pelas designações sociais (versos 20 a 22).
Retome, por fim, a última estrofe.
1. E já tarde da noite
2. volta meu elefante,
3. mas volta fatigado,
4. as patas vacilantes
5. se desmancham no pó.
6. Ele não encontrou
7. o de que carecia,
8. o de que carecemos,
9. eu e meu elefante,
10. em que amo disfarçar-me.
11. Exausto de pesquisa,
12. caiu-lhe o vasto engenho
13. como simples papel.
14. A cola se dissolve
15. e todo o seu conteúdo
16. de perdão, de carícia,
17. de pluma, de algodão,
18. jorra sobre o tapete,
19. qual mito desmontado.
20. Amanhã recomeço.

Note que, no verso 6 o verbo aparece pela primeira vez no pretérito perfeito (encontrou). Aqui se revela o sentido dos verbos anteriores, no presente do indicativo. O fabrico do elefante e sua busca pelo mundo não são ações pontuais, mas habituais. O Eu lírico, finalmente identificado com o seu elefante, sai diariamente ao mundo à procura de lugar para o que é essencialmente humano, para o fazer poético e seu elefante se desfaz ao fim do dia sem ter encontrado o que precisava (versos 1 a 10).
Depois de ler o poema todo em chave alegórica (o que é apenas uma possibilidade de leitura, nunca a Verdade sobre o poema), podemos interpretá-lo:
O elefante, compõe uma alegoria da impossibilidade do fazer poético e do que é essencialmente humano em um mundo reificado. Há uma luta diária do Eu lírico para não embrutecer neste mundo, mas uma luta que já não encontra eco nos outros homens, já sucumbidos à ordem reificada do mundo moderno. No entanto, o artista não perde a esperança de oferecer ao mundo o seu objeto tão delicado quanto indesejável: amanhã recomeço.